Pesquisadores resgataram os lobinhos depois de encontrar a fêmea morta; jovens crescem saudáveis nos recintos.
Por Giulia Bucheroni, Terra da Gente
foto: Lobos-guará foram resgatados depois da mãe ser encontrada sem vida, no ano passado — Foto: Marcella Lasneaux/Arquivo Pessoal
Há pouco mais de um ano pesquisadores e especialistas de diferentes estados brasileiros se uniram para encarar uma grande missão: resgatar e reabilitar cinco filhotes de lobo-guará. A história começou na Fazenda Trijunção, localizada entre os estados de Minas Gerais, Goiás e Bahia. “Nós monitorávamos uma fêmea, chamada Caliandra, desde 2019, com rádio colar. Em junho de 2020 descobrimos uma toca com os filhotes ainda recém-nascidos e passamos a acompanhar, sem intervir. No dia 21 do mesmo mês, porém, perdemos o sinal do GPS, que só no dia 25 voltou a funcionar, indicando que a fêmea estava em uma fazenda vizinha. Infelizmente encontramos ela sem vida”, conta a pesquisadora do projeto Onçafari, Valquíria Cabral.
Ao notificar o ICMBio-CENAP sobre a morte da fêmea de lobo-guará, a equipe da Trijunção foi orientada a resgatar os filhotes e encaminhá-los para o zoológico de Brasília – local mais indicado para os primeiros socorros dos lobinhos. “O zoo mobilizou uma equipe grande que trabalhou muito para que todos sobrevivessem, dando uma nova chance de vida e de soltura”.
Depois de meses em tratamento e avaliação médica os lobos estavam prontos para a próxima etapa do processo de reabilitação em recintos preparados para recebê-los. Foi determinado que o Onçafari ficasse responsável por dois filhotes, enquanto outros dois fossem para o Parque Vida Cerrado – na Bahia, e uma fêmea ficasse sob responsabilidade da pesquisadora doutoranda em ecologia, Ana Raquel, de Brasília.
“Na Trijunção recebemos o Araticum (macho) e a Mangaba (fêmea) no mês de novembro. Assim que chegaram nós começamos o trabalho de adaptação com frutas do cerrado, em especial a lobeira. No começo eles brincavam com o fruto, mas aos poucos aprenderam a comer”, explica Valquíria, que detalha as etapas de adaptação dos lobos em ambiente controlado. “Meses depois introduzimos as presas vivas, como os preás. Essa também é uma parte importante da reabilitação, porque eles precisam aprender a caçar e adquirir imunidade para patógenos e parasitas que ingerem através das presas”, conta.
Toda vez que temos a chance de salvar uma vida e colocá-la de volta à natureza a gente está contribuindo para a conservação do bioma como um todo
— Valquíria Cabral, bióloga
Tanto esforço tem trazido resultados animadores: os irmãos reabilitados na Trijunção atingiram nota máxima em todos os quesitos de reabilitação. “Eles aprenderam a caçar e desenvolveram super bem esse instinto. Além disso, sabem marcar território, identificam a variedade de frutos locais e se comunicam bem, inclusive com lobos de vida livre que por vezes ‘disputam’ território do outro lado da grade”, revela Valquíria, orgulhosa do avanço no projeto.https://4a3e2730910f3d1399c58e2539d0b451.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
“O lobo-guará é um animal chave, topo de cadeia, que está ameaçado. Uma das muitas frentes de ação que nos ajuda a reverter o nível de ameaça é esse trabalho de fortalecimento da população existente, reabilitando os animais para devolvê-los à natureza”, completa.
Resgate consciente: atenção!
A bióloga reforça que toda a etapa de resgate e reabilitação só foi iniciada depois de constatada a morte da fêmea, mãe dos filhotes, e que essa situação serve de exemplo para evitar resgates indevidos.
“É muito comum pessoas encontrarem filhotes na toca e acharem que foram abandonados pela fêmea, mas não é bem assim: os lobos adultos não costumam ficar o tempo todo na toca. A fêmea sai para caçar e proteger o território e por vezes nem dorme com os filhotes. É normal que eles fiquem sozinhos por um tempo”.
Diante disso, fica a lição: o resgate só deve ser feito quando a ausência da fêmea for comprovada. “Ao encontrar filhotes na natureza o ideal é não interferir, a não ser que você saiba que a mãe morreu”, diz.
Trabalhando pelo mesmo objetivo
De acordo com Valquíra, essa é uma experiência crucial para o desenvolvimento de um protocolo de reabilitação e soltura de lobos-guará – ainda inexistente. “Mesmo trabalhando com abordagens diferentes, nós do Onçafari, a equipe do Vida Cerrado e a Ana temos o mesmo objetivo: criar um plano detalhado com o passo a passo de reabilitação para soltura de lobo, em especial com animais como os nossos, que foram resgatados ainda filhotes. Com o protocolo aumentamos as chances de solturas bem-sucedidas”, diz.
Ela explica que a maior dificuldade para desenvolver algo oficial é a falta de informação sobre o desenvolvimento dos filhotes em vida livre. “Existem trabalhos muito bons, como o Amigo Lobo, que nos permitem agir com base em estimativas. Mas ainda faltam informações precisas sobre as fases de desenvolvimento dos bichos de vida livre”, completa.
“Esse trabalho coletivo é de extrema importância, porque ao produzir informação sobre a espécie conseguimos dar uma segunda chance de vida a esses animais ameaçados”, diz
A zootecnista e doutoranda em ecologia, Ana Raquel, reforça a importância dessa grande missão para a conservação da espécie. “Eu nunca me envolvi tanto em um projeto como esse. Acompanhar cada etapa do aprendizado deles é uma vitória. Sem dúvida alguma é o projeto dos sonhos: trabalhar para colocá-los de volta no ambiente de onde eles nunca deveriam ter saído. Essa deve ser a inspiração para todos os projetos de conservação, com certeza”.
Ana explica que o desafio é grande justamente porque o processo ainda é novo – antes desse, houve somente uma experiência de resgate do filhote, reabilitação e soltura. “O que vemos com bastante frequência é o tratamento de indivíduos adultos, resgatados com alguma fratura ou doença por exemplo, que depois são reabilitados e devolvidos à natureza. No caso do resgate de filhotes, o processo é diferente e com etapas ainda pouco conhecidas pela ciência”, completa.
Em Brasília, a pesquisadora acompanhou o tratamento dos filhotes no zoológico e hoje monitora – junto à equipe do Vida Cerrado, a fêmea Pequi. “Ela está no recinto do projeto, junto aos dois irmãos, e ficará lá até que o nosso recinto em Brasília seja construído. A ideia é que a soltura da Pequi seja feita aqui em Brasília, em uma área apta a recebê-la”.
Assim como os lobos encaminhados à Trijunção, os jovens alojados na Bahia, recebidos pela equipe do Parque Vida Cerrado, estão saudáveis e se adaptando à vida selvagem. “Essa experiência é muito importante para o oeste da Bahia: é a primeira vez que a gente está propondo um projeto de reintrodução de uma espécie ameaçada em uma propriedade agrícola. Com esse trabalho reforçamos a importância de reservas e APPs bem conservadas que cumprem um papel fundamental não só de legislação, mas que permitem processos de reabilitação. O grande diferencial do trabalho realizado aqui pelo Parque é justamente a área onde o processo está sendo executado: na fazenda de uma das maiores produtoras de soja da região, contando com o apoio e engajamento dos proprietários”, destaca a bióloga e coordenadora do Parque Vida Cerrado, Gabrielle Bes da Rosa.
Soltura
A previsão de soltura dos lobos-guará é no início do ano que vem. “Com o período de chuvas a oferta de alimento também é maior, o que facilita a adaptação dos lobos em vida livre. No entanto, essa é só uma expectativa: nós vamos continuar monitorando o desenvolvimento deles nos recintos e seguir com todas as etapas de reabilitação para que a soltura aconteça no momento certo e seja bem-sucedida”, destaca Valquíria.
Na fase de reabilitação em recintos são utilizados diversos métodos de monitoramento, como o uso de câmeras trap, observação direta e análise de fezes. “Evitamos ao máximo a interação com humanos. O ideal é que desenvolvam os instintos selvagens e sobrevivam sem nenhum apoio externo”, finaliza.
Fonte: G1