A lobo-guará fêmea Pimenta, que foi capturada e tratada em Mococa (SP). Em três meses ficou boa – Foto: Rogério Cunha de Paula
Por Dimas Marques
Eram 11h30 do último dia 4 de fevereiro. O céu cinza, com nuvens densas, era prenúncio de chuva forte. Como sempre, tudo muito calmo na guarita da portaria da fazenda Brejão, propriedade localizada a cerca de 10 quilômetros da área urbana de Arceburgo, município de pouco mais de 10 mil habitantes do sul de Minas Gerais. Por ali, Luiz Máximo Gonçalves Filho, de 53 anos, cumpria mais um turno de trabalho. “Vi um animal se aproximando, mas tinha algo estranho. Quando ele chegou mais perto, deu para perceber que era um lobo-guará, mas sem nenhum pelo no corpo”, relata o vigilante.
Horas depois, às 14h30, o lobo-guará sem pelos reapareceu. A chuva anunciada durante toda a manhã caía forte. “As seriemas que vivem ali perto correram, o que chamou minha atenção. Fui dar uma olhada na estrada e vi novamente aquele lobo sem pelos. Corri para pegar meu celular e comecei a filmar”. Devagar e bastante cauteloso, o animal, que Gonçalves Filho suspeita ser uma fêmea, entrou na fazenda e desapareceu. Nunca mais foi visto.
Arceburgo, apesar de teoricamente estar totalmente inserida no bioma Mata Atlântica, já faz parte da zona de transição para o Cerrado. Não é incomum o encontro com animais de espécies típicas desses dois biomas, inclusive lobos-guarás (Chrysocyon brachyurus). “Já vimos algumas vezes aqui na fazenda. Eles aparecem geralmente de noite para pegar alguma sobra de comida. Tenho certeza de que vi essa mesma loba umas três semanas antes, mas com todos os pelos”, conta Gonçalves Filho.
A filmagem do lobo-guará sem pelos chegou às mãos do secretário de Meio Ambiente do município, Ademir Carosia, que imediatamente entrou em contato com o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (Cenap/ICMBio). Os especialistas prontamente sugeriram a possível causa do problema do animal: sarna sarcóptica, a mesma encontrada em cães domésticos.
O caso não surpreendeu o biólogo e analista ambiental do Cenap, Rogério Cunha de Paula. Trabalhando há 25 anos com lobos-guarás e coordenando o Plano de Ação Nacional para a Conservação dos Canídeos Silvestres (PAN Canídeos) do ICMBio, ele afirma que começou a ter contato com ocorrências de lobos-guarás infectados com sarna sarcóptica há nove anos. Seu primeiro registro é de 2012, na região da serra da Canastra (MG). Na literatura científica, o estado de São Paulo, por exemplo, teve seu primeiro caso faz 12 anos. Há ocorrências conhecidas também em Goiás e na Bahia.
“O problema ainda não foi estudado a fundo, mas no ano passado começamos a mapear a ocorrência de lobos com alopecia (queda de pelos) com características semelhantes aos animais em que identificamos a sarna sarcóptica”, afirmou de Paula. De acordo com o biólogo, localidades de Arceburgo e de áreas vizinhas devem estar sofrendo com uma infestação do ácaro Sarcoptes scabiei, o responsável por esse tipo de sarna.
Sarna pode ser decorrente do contato com cães domésticos
O Sarcoptes scabiei é um ectoparasita, ou seja, um parasita que vive “do lado de fora” do organismo do animal, e, neste caso, em camadas mais profundas da pele de seu hospedeiro. A veterinária Flávia Fiori, que trabalha nos projetos com lobos-guarás do Instituto para a Conservação dos Carnívoros Neotropicais — Pró-Carnívoros, explica que, ao se instalar na pele do animal, o ácaro começa a “cavar túneis” com seu aparelho bucal, o que deve causar desconforto.
“Eventualmente, as consequências que a sarna provoca no organismo do animal podem levá-lo a óbito devido a infecções secundárias. A pele é o primeiro e maior órgão de defesa e, uma vez que sua integridade é perdida, o animal pode adquirir outros patógenos que levam a desenvolver infecções, debilitando ainda mais seu estado de saúde”, explicou Fiori.
O contato entre lobos-guarás e cães domésticos contaminados com sarna sarcóptica é a principal suspeita para explicar os casos da divisa de São Paulo e Minas Gerais. “No Brasil, ainda não existem estudos sobre a cadeia epidemiológica, ou seja, o processo de propagação do ectoparasita, estabelecida para os lobos. Portanto, não podemos afirmar que esse animal de Arceburgo e outros lobos estão adquirindo o ácaro devido ao contato com cães domésticos. Porém essa hipótese não é descartada, inclusive ela é bastante forte, uma vez que cães domésticos e fauna silvestre no geral estão cada vez mais próximos”, afirma Fiori.
A sarna sarcóptica pode ser transmitida por contato direto ou indireto. O direto acontece através do contato da pele de um animal que possui o ácaro com a pele de um outro não contaminado. “Esse tipo de transmissão pode ocorrer entre membros de um mesmo grupo familiar, como durante os cuidados parentais, no momento da cópula ou em alguma briga. Já entre indivíduos de espécies diferentes, no momento da caça”, explica Fiori. A transmissão indireta se dá no contato dos animais com objetos inanimados. “Pensando nos silvestres, pode ser com um capim ou em uma toca contaminados”, exemplifica a veterinária.
Mas Fiori reforça que essas formas de transmissão conhecidas ainda não foram comprovadas para os casos dos lobos-guarás. O mapeamento nacional de casos é uma das linhas de ações do PAN Canídeos, que tem entre seus objetivos “reduzir os impactos negativos de doenças e da interação com animais domésticos”.
Além de trabalhar com lobos-guarás, o Plano de Ação Nacional busca redução de fatores que causem impactos negativos sobre as populações de cachorros-vinagre (Speothos venaticus), de cachorros-do-mato-de-orelhas-curtas (Atelocynus microtis) e de raposas-do-campo (Lycalopex vetulus). As quatro espécies estão ameaçadas de extinção, classificadas com “vulneráveis” na Lista Nacional Oficial de Espécies da Fauna Ameaçadas de Extinção.
Historicamente, os lobos-guarás têm na perda e na transformação de seu habitat sua principal ameaça. As alterações promovidas pela ocupação humana e por atividades econômicas como a agropecuária no Cerrado, bioma natural da espécie, estão entre as causas de sua redução populacional. O mesmo fenômeno de alteração da paisagem em outros biomas também tem motivado uma provável expansão da área de ocorrência da espécie. Populações de lobos-guarás já estão estabelecidas em áreas em regeneração de Mata Atlântica e há estudos verificando se isso está acontecendo também no Arco do Desmatamento, na porção sul da Amazônia (22 registros de lobos-guarás foram feitos nos últimos 25 anos).
Já são oito lobos infectados
O mapeamento que está sendo feito pelos pesquisadores para o PAN Canídeos já registrou com capturas de animais e imagens de armadilhas fotográficas outros sete lobos-guarás infectados com sarna sarcóptica em Mococa, São José do Rio Pardo e Caconde, todos municípios paulistas vizinhos uns dos outros e situados na divisa com Minas Gerais. A distância entre Mococa e Arceburgo, por exemplo, é de cerca de 15 quilômetros apenas.
Em Mococa, uma fêmea de lobo-guará de 6 anos doente foi capturada e tratada em julho de 2019. Pimenta, como passou a ser identificada, estava com filhotes e seu problema com sarna foi descoberto quando teve imagens registradas no monitoramento fotográfico realizado para o projeto Lobos do Pardo. Esse trabalho é uma iniciativa do Instituto Pró-Carnívoros em parceria com o Cenap/ICMBio e a empresa de energia AES Tietê para a conservação da espécie na região da bacia hidrográfica do Rio Pardo, junto aos municípios paulistas de Mococa, São José do Rio Pardo, Caconde, Mogi-Guaçu, Mogi-Mirim e Itapira e os mineiros Botelhos e Poços de Caldas. Os pesquisadores conseguiram capturá-la em uma armadilha planejada especificamente para lobos-guarás, coletar material para exames, medicá-la e soltá-la com um colar de monitoramento.
“Pimenta tinha alterações de pele e pelagem importantes. O tratamento foi um sucesso”, afirma Fiori. A veterinária relata que, no geral, um mês após a administração de medicação via oral, o animal já apresenta melhoras e em três meses não existem mais sinais clínicos da sarna.
Apesar de o tratamento da sarna sarcóptica já estar bem estabelecido, a prevenção da doença ainda não. Pelo fato de os estudos sobre a cadeia de transmissão da enfermidade envolvendo lobos-guarás estarem no início, os pesquisadores ainda não têm respostas exatas. Ainda assim, evitar o contato com animais domésticos é considerado uma ação necessária. “Sem dúvida nenhuma, vejo só pontos positivos em evitar o contato de animais domésticos com silvestres, falando principalmente do cão e do gato domésticos. Independentemente de o cão ser ou não o responsável por transmitir a sarna para os lobos, evitar esse contato minimiza os possíveis riscos não só dessa transmissão, mas como de muitas outras doenças que eles podem ter e transmitir”, salienta Fiori.
A veterinária do Instituto Pró-Carnívoros afirma que os proprietários de cães e gatos devem exercitar a guarda responsável e manter seus animais devidamente vacinados, vermifugados, livres de qualquer doença, de sede e de fome, e protegidos dentro dos limites de suas propriedades.
Sobre o lobo-guará sem pelos de Arceburgo, o secretario Carosia informou ter feito contato com moradores e funcionários da fazenda para informarem caso vejam o animal. “Queria muito conseguir ajudar essa lobinha”, diz, esperançoso, o vigilante Gonçalves Filho.
Fonte: Fauna News